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Esboço onírico na prática fenomenológico-existencial

Segundo Merleau-Ponty (1999), no que diz respeito ao ser humano em contato com o mundo, há sempre uma relação entre alguém que percebe e algo que é percebido. Pode-se dizer que o conhecimento sempre deriva de algum tipo de percepção. No entanto, quando a proposta é arriscar-se em um caminho que não esteja dentro do pensamento racional, é necessário um meio de se direcionar nesse território desconhecido, como é o caso da imaginação, premonições, sentimentos, vivências e símbolos. Os meios alternativos são os mais diversos: cartas, imagens, borra de café, leitura da palma da mão (quiromancia), atordoamento da consciências a partir de substâncias, êxtase a partir de danças, ritos e exercícios, vivências orgásmicas, falar aquilo que vier à boca, escrever num fluxo contínuo sem nenhuma censura, ouvir música, etc. Creio que o exemplo mais freqüente, apesar de todas essas possibilidades, seja o dos sonhos.

Quando esses meios são aproximados e explorados com a devida racionalidade ocidental, pouco têm a oferecer, pois não se completa a relação intencional: está mudado o sujeito num método específico (científico), e isso muda o alcance ao objeto. Segundo Edgar Morin, só é possível perceber aquilo que o paradigma suporta (Morin, 1996). Por esse motivo, há uma necessidade de alternativas ao paradigma oficial muitas vezes rejeitadas ou aceitas de maneira subjacente, sem que se fale sobre essas alternativas em sua própria linguagem, mas adaptando-as ao discurso científico.

A racionalidade não consegue alcançar o sonho em sua potência desperta enquanto o sonho acontece, dificultando ainda mais seu estudo. As imagens do sonho diferem das imagens corriqueiras por estarem desconectadas do pensamento racional. No entanto, justamente pelo fato de estar presente num tipo de manifestação específico da consciência, adquire aspectos também específicos e que devem ser compreendidos ao seu modo, em sua atmosfera peculiar. A atmosfera onírica, portanto, seria uma alternativa à racional, embora, possa haver aproximações entre elas sem uma total cisão, visto que a imagem de elementos e situações da vida desperta surgem no sonho também. Vejo esse esforço de modo muito próximo do esforço do psicólogo ao tentar compreender um outro a partir de suas próprias vivências mas da maneira do outro, com as percepções, símbolos e o pensamento do outro. Logo se nota por que Merleau-Ponty afirma que perceber já é uma transcendência, um sair de si próprio e lançar-se ao outro. No caso, há uma transcendência, um lançamento ao mundo onírico e suas peculiaridades, com a dificuldade racional de que não será possível pensá-lo da maneira totalmente racional enquanto se sonha, embora possa justamente ser essa a vantagem que obriga uma flexão no pensamento, um considerável alargamento que desvia do padrão intelectual cotidiano.

Percebe-se que há uma mudança muito grande no modo de entender os sonhos desde os períodos mais antigos da humanidade. Nos relatos mais remotos, o território onírico parecia ser considerado divino, no qual o sonhador visitava um suposto mundo supra-humana e depois podia trazer mensagens ao mundo desperto. Nos sonhos bíblicos relatados, mostra-se uma consideração tão grande desse aspecto, que sonhar era praticamente uma especialidade. Não era qualquer sonho um sonho divino, mas apenas os sonhos de pessoas nobres, de grande destaque social ou quando interpretados por alguém especial pelo mesmo motivo ou por sua habilidade ao decifrar os sonhos. Também os sonhos que diziam respeito ao destino de um povo tinham sua consideração de divindade.

Pode-se notar uma certa hierarquia entre os sonhos, o que evidencia que são considerados de ordens diferentes e não todos de origem divina. Aristóteles também combateu a idéia de que todos os sonhos seriam vindos dos deuses. Era reconhecido o fato de que a maioria dos sonhos são corriqueiros e nada têm de especial. Freud veio a chamá-los futuramente de restos diurnos (Freud, 1996), ou seja, aqueles que trazem apenas lembranças do dia modificadas em alguns aspectos de conteúdo, forma ou cronologia, por exemplo.

Apesar de todo o avanço tecnológico e científico, os sonhos continuam assumidamente misteriosos para as vertentes empírico-analíticas, que os explicam por relações de causa e efeito até certo ponto. Depois disso, reconhecem seus limites ao afirmar não poderem responder atualmente sobre os mecanismos biológicos envolvidos nos sonhos lúcidos por exemplo (Ribeiro, 2004).

Eis o potencial onírico de não se reduzir a explicações causais com facilidade, trazendo tantas possibilidades “mágicas” se comparadas ao nosso dia a dia. Na segunda fase de seu pensamento, Heidegger afirma que o contato profundo com o ser é possível por apenas dois caminhos: a arte e o sagrado.

Arrisco dizer que o sonho pode ser considerado um misto desses dois caminhos. Basta vermos o histórico dos sonhos bíblicos e a mística envolvida em seu conteúdo e análises possíveis para identificarmos o sagrado. Quanto ao seu lado artístico, os sonhos se mostram verdadeiras poesias de imagens, sons, palavras e vivências que acontecem sem que alguém se debruce para compô-lo ou planejá-lo. Nesse sentido, o sonho é um modo de contato com o ser e, portanto, na compreensão heideggeriana, uma espécie de autenticidade. Sonhar e encarar o sonho com a devida profundidade é ser autêntico também.

Todas essas veredas levam a um único ponto de encontro por onde eles atravessam: eu (tão frágil como vimos durante uma dinâmica em aula). Diferente das psicologias, Heidegger chama esse eu de dasein, o ser do homem (e não o ente humano), que se configura como uma abertura para o mundo, uma clareira no meio da floresta. Isso tanto me envolve como envolve tudo o que engloba minha existência ao passar por esta abertura. É claro que essa abertura do dasein é a mesma enquanto dorme, mas penso que a diferença só ocorre por estarmos presos à já comentada racionalidade ocidental quando acordados. Por isso é necessária a diferenciação proposta por Medard Boss. Quanto ao dasein, todos os caminhos levam ao sentido dessa existência. O sonho desvela, de sua maneira peculiar, sentidos ligados à mesma abertura, seja através das imagens, das sensações, das situações sonhadas, etc.

Outros caminhos também são possíveis para se compreenderem os sentidos, como as escolhas feitas na vida, as emoções e sentimentos que brotam nas diversas situações por exemplo. Mas o sonho é o distanciamento das explicações, a “casca” racional fica mais frágil no momento onírico.

Em relação à prática, gosto da idéia de Boss de perguntar “E agora, acordado, como você entende esse sonho?” Creio que esse seja o modo de destrinchar um campo gigantesco de sentidos na psicoterapia.

No artigo Sonhar e psicoterapia, Boss expõe o caso de um rapaz que sonhava ver de longe algumas figuras humanas. Com o auxílio de um binóculo, pôde identificar que se tratavam de moças num campo muito distante. Juntamente a outros elementos, a prática psicoterapêutica mostrava as dificuldades de relacionamento do rapaz, principalmente no que dizia respeito aos relacionamentos amorosos. À medida que o modo de ser-com-o-outro foi sendo trabalhado durante as sessões, o mesmo sonho começava a diminuir a distância entre ele e as moças até poderem conversar durante um dos últimos sonhos.

O sonho é um caminho para o ser e o sentido do dasein. Um caminho muito próximo da autenticidade e distante dos diversos vícios intelectuais presentes na contemporaneidade herdados do pensamento moderno.

Bibliografia

Amatuzzi, M. M. (1988/1989) Tomás de Aquino e os sonhos: recorte de uma psicologia humanista. Boletim de Psicologia 38: 33-58.

Aristotle. On Dreams.

Boss, M. (1979) Na noite passada eu sonhei… São Paulo: Summus.

____. (1985) Sonhar e psicoterapia. Daseinsanalyse, 6, 5-20. São Paulo.

Freud, S. (1996) Obras completas. Madri: Biblioteca Nueva.

Heidegger, M. (2002) Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes.

Merleau-Ponty, M. (1999) Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.

Morin, E. Epistemologia da complexidade. Em SCHNITMAN, D. F. (Org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artmed, 1996.

Ribeiro, S. Towards an evolutionary theory of sleep and dreams. Multiciência: a mente humana, 3, outubro de 2004.

 

André Roberto Ribeiro Torres
Dezembro de 2007

Torres Psicologia